"Chuva.Bátegas de água que parecem cargas de cavalaria.Quem se arrisca
a pôr o pé fora da porta, atravessa a rua com a velocidade dos relâmpagos.
Do lado de dentro das casas, dos automóveis e dos eléctricos, a humanida-
de separa-se da natureza por vidraças ...
Heróico, sereno, plantado no jardim como um arbusto flexível mas persisten-
te, o busto de António Nobre. E a penosa visão do poeta imortalizado,
deu-me para pensar... na desgraça das estátuas. É que são realmente
desgraçadas !Pelo menos as daqueles que em vida as mereceram de verda-
de.Ainda hoje me arrepio, só de recordar a visita que fiz, num dia de remoto
Inverno, a um Camilo (Castelo Branco)monumentalizado no Porto. Debaixo
de um céu negro e pesado, a escorrer água e solidão, a sua máscara de
azebre era a imagem dum condenado a penas eternas. O angustiado de
Seide, enquanto vivo, tinha ao menos um filho doido, os livros e o génio
para aquecer o coração. Mas aquele Camilo de forma, esquecido e desabri-
gado, não tinha nada. Nem sequer o calor sd próprias veias!
"É claro que nunca passou pela cabeça de nenhuma patriótica edilidade, de
nenhum indefectível admirador, esta ideia: que talvez se esteja ali, no
próprio acto de inauguração do bronze, a arredondar a coroa de espinhos
com que em vida já se crucificou o Homem que se glorifica. É que... Mas que
trágico destino ficar numa praça a apanhar vento e chuva até à consumação
dos séculos! Era bom estar estar ali,era. Havia de ser, porém acompanhado
de uma saudade verdadeira. Duma lembrança quente, perene, constante,
que fosse como uma seiva a correr entre a vida e a morte. Mas qual o quê!
Entre nós, uma estátua significa apenas o chumbo que não se pôs no esqui-
fe. E por isso é que não conheço um sequer dos infelizes embalsamados em
metal que há por aí que se sinta bem na sua mortalha póstuma.
É claro que também há sujeitos de pedestal, alegres,felizes, com ar de quem
vigarizou a posteridade. Desses, porém, nem vale a pena falar: apenas
continuam na morte a triste comédia que representaram na vida ... "
Miguel Torga
Diário
Coimbra, 12 de Dezembro de 1942